Editora: Companhia das Letras


Resumo

Avesso da Pele, escrito por Jeferson Tenório, foi ganhador do prémio Jabuti em 2021. É um romance que para além de uma crítica racial, temática principal, também fala sobre pertencimento, relações entre pais e filhos e escola.

O livro é narrado pelo personagem Pedro, que após a morte do pai, tenta (re)construir o passado da sua família. Nessa busca ele compreende também que não conhece muito sobre os pais, e essa parte estória me chama atenção do quão pouco sabemos sobre eles, e de como eles também já passaram por todos os tipos de experiências e aflições que nós passamos.

A outra parte da estória que obviamente me tocou foi a questão que o pai de Pedro, Henrique, era professor. E eu, como professor, consegui reviver diversas situações, questionamentos e aflições a partir da experiência do personagem. O quão exigente é um trabalho que você precisa ser a referência, a todo momento, e o quão exposto você está para a vida de tantas pessoas. As dúvidas e aflições a respeito se as aulas estão sendo ministradas, a luta pela atenção e interesse dos estudantes. Enfim, é um retrato perfeito principalmente dos professores de escolas públicas.

A estória acontece em Porto Alegre, e sobre como esses personagens se sentem estrangeiros na cidade. Em uma passagem muito bonita Pedro descreve da dificuldade que possui em compreender e sentir que faz parte de Porto Alegre, fato várias vezes relatado também pelo pai. A ideia do pertencimento está presente nos relacionamentos amorosos, de Pedro com a sua mãe, de Henrique com o seu pai (que o abandonou quando tinha 1 ano de idade) e também com a profissão.

Obviamente toda a narrativa está focada na questão racial, de como é a rotina diária de um negro em Porto Alegre (mas não só lá, como em todo país, ou até mesmo na grande maioria das cidades ao redor do mundo), da rotina e normalização de uma opressão que passam todos os dias em lugares públicos, nas operações policiais, etc. Após a morte do pai de Pedro, ele está reunido com a tia e tem uma passagem que, para mim, resumiu muito a aflição do que é ser negro em uma sociedade racista:

“Olhei para minha própria pele. E era mais clara que a de meu pai e minha mãe. E talvez por isso eu tivesse sido parado pela polícia duas vezes até ali. E fiquei pensando na crueldade de tudo aquilo. E tive vontade de chorar e já não sabia qual era o real motivo, se era por causa de sua morte, se era pelos olhares daquelas pessoas para minha tia, se era pela descoberta de que as mulheres mais pretas tinham de lidar com outras situações. Minha tia Luara pediu o cardápio e, enquanto esperávamos a comida, eu perguntei como ela suportava tudo aquilo. Tudo o quê?, ela perguntou. Tudo isso, de ser sempre julgada pela cor da pele. Minha tia me olhou com tristeza e disse que a gente se acostuma. A gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma quando você caminha na rua e as pessoas recolhem as bolsas e mochilas, a gente se acostuma quando os próprios homens preferem as negras mais claras, a gente se acostuma a ser só. A gente se acostuma.”

Achei um livro muito bem construído e sensível. Nunca é uma leitura fácil quando o assunto é racismo, morte e pertencimento. Mas é necessário.

Citações e comentários

  • p. 13

As vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afasta-va-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste aparta-mento, você será sempre um corpo que não vai parar de mor-rer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e sais da vida, e ela continuou áspera. Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. E com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar.

  • p. 39 Incrível o poder que uma criança tem de encerrar e depois iniciar fases na vida dos adultos.

  • p. 61 É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.

  • p. 179 Mas a morte é um lugar clichê e por isso os lugares-comuns são permitidos.

  • p. 183 Não gostar do fim é imprescindível quando se pretende algo na vida.