Tradução: Piotr Kilanowski Editora: Aleph
Resumo
Solaris é um livro de ficção científica escrito entre 1959 e 1960. Existem também três filmes produzidos a partir da estória do livro. Eu assisti há muitos anos a versão do Andrei Tarkovsky lançada em 1972. O filme é ótimo!
Solaris é um planeta que órbita ao redor de dois sóis (um vermelho e outro azul), e possui um oceano de certa maneira inteligente, investigado por cientistas da terra durante muitos anos, possuindo inclusive uma estação fixa para pesquisas. A estória inicia justamente com Kris Kelvin, psicólogo, chegando na estação para colaborar com as investigações que acontecem por lá. Porém, assim que ele desembarca na estação, percebe que o seu principal parceiro e mentor morreu recentemente. Sem entender os motivos, ele começa uma espécie de investigação, porém existem muitos mistérios que os outros ocupantes da estação se recusam (ou não conseguem) esclarecer.
O oceano, que de fato é um ser com um certo poder sobre os personagens e aquele planeta, consegue de alguma maneira invadir o subconsciente dos personagens e produzir, a partir das suas memórias, seres “reais” (naquele planeta). São uma espécie de clone de pessoas próximas aos habitantes da estação.
A estória é repleta de dados que tentam de alguma maneira explicar todas as teorias desenvolvidas por pesquisadores na terra sobre o planeta e o oceano, mas nenhuma de fato consegue esclarecer os fenômenos que acontecem lá.
O que mais me agradou foram as metáforas e tentativas de explicação sobre teorias da mente e o consciente. É interessante como eles tentam recusar uma ideia de antropomorfização do oceano, o que fez criar uma certa conexão com as discussões que proponho na minha tese de doutorado sobre inteligência artificial. Alguns trabalhos como o de Margaret Boden e Joanna Zylinska buscam desmistificar a ideia de uma máquina consciente a partir da perspectiva da consciência humana. Achei relevante essa discussão no livro, que possui inclusive como um dos cientistas tripulantes um pesquisador de Cibernética, tema e matéria bem recente para a época.
A trama é bem envolvente, principalmente nas relações e diálogos entre Kelvin (Kris) e Harey, sua esposa que se suicidou na terra, e que aparece de maneira misteriosa na estação.
Pode ser um livro um pouco entediante para alguns em certos momentos, principalmente nas longas descrições de pesquisas e teorias técnicas que tentam explicar sobre as origens e acontecimentos de Solaris.
Por fim, uma das passagens que mais gostei é uma reflexão de Kris, já na parte final do livro. Ele levanta alguns questionamentos sobre a existência de deus, e também sobre um deus defectível. As ideias que ele apresenta são maravilhosas.
Citações
- p. 45
Tais hipóteses exumaram e reanimaram um dos mais antigos problemas filosóficos - a relação entre a matéria e o espírito, ou seja, a consciência. Era preciso bastante coragem para, pela primeira vez - como Du Haart -, atribuir ao oceano uma consciência.
Esse problema, que metodologistas apressaram-se em classificar como metafísico, inflamava todas as discussões e disputas. Seria possível o pensamento sem consciência? Mas será que os processos que ocorrem no oceano podem ser chamados de pensamento? Será que a montanha é uma pedra muito grande? Será que o planeta é uma imensa montanha? Podemos continuar utilizando estas de-nominações, mas uma nova escala de grandeza põe em cena novos padrões e fenômenos.
- p. 117
Somos humanitários e nobres, não queremos subpagar outras raças, queremos apenas transmitir a eles nossos valores e, em troca, assumir seu patrimônio. Nós nos consideramos os cavaleiros do Santo Contato. Essa é uma segunda mentira. Não buscamos nada além de pessoas. Não precisamos de nenhum outro mundo. Precisamos de espelhos. Não sabemos o que fazer com os outros mundos. Para nós basta este mundo, e ele ainda nos deixa boquiabertos. Queremos encontrar a nossa própria imagem idealizada; deve haver corpos celestes com civilizações mais aperfeiçoadas do que a nossa; em outros, esperamos novamente encontrar o reflexo de nosso primitivo passado. Entretanto, do outro lado, existe algo que não aceitamos e do qual nos defendemos, pois, afinal, nós não trouxemos da Terra apenas um destilado das virtudes, uma estátua heroica do Ser Humano! Viemos para cá tais como somos de verdade, e quando o outro lado nos mostra essa verdade, essa parte que dissimulamos, não podemos nos conformar com isso!
Está me colocando pra fora? Você também? Deixa a barba crescer e me põe pra fora? Já não quer mais que eu previna você, que eu lhe de conselhos, como um honrado companheiro interestelar faz com o outro? Kelvin, vamos abrir as escotilhas do fundo, vamos chamá-lo, lá embaixo, talvez ele ouça! Mas como ele se chama? Pense só, nós demos nomes a todas as estrelas e planetas, mas talvez elas já tivessem um nome. Mas que usurpação! Escute, vamos lá. Vamos gritar… vamos dizer a ele o que ele fez com a gente, até ele ter medo… e construir simetríades prateadas para nós e orar por nós com a sua matemática, e jogar anjos ensanguentados em nós, e o tormento dele será o nosso tormento, e o pavor dele será o nosso pavor, e ele vai nos suplicar por um fim. Porque tudo isso, o que ele é e o que ele faz, é uma súplica por um fim.
298 Mas eu não tinha casa. A Terra? Eu pensava sobre suas enormes cidades populosas e barulhentas, nas quais vou me perder, vou sumir quase do mesmo jeito como se levasse a cabo aquilo que quis fazer naquela segunda ou terceira noite - na escuridão, jogar-me no oceano que ondeava fortemente. Vou me afogar em pessoas. Falarei pouco e serei cuidadoso e, por isso, serei um camarada valoroso; terei muitos conhecidos, até amigos, também mulheres, e talvez até uma única mulher. Durante algum tempo terei que me forçar para sorrir, cumprimentar, levantar-me, executar milhares de atividades banais, das quais se constitui a vida terrestre, até que eu pare de senti-las. Acharei novos interesses, novas tarefas, mas não me entregarei a elas por inteiro. A nada nem a ninguém, nunca mais. E pode ser que eu vá olhar dentro da noite, lá onde no céu a escuridão da nuvem de poeira, como uma cortina negra, bloqueia o fulgor dos dois sóis; e lembrar-mede tudo, até daquilo que penso agora - e vou recordar com um sorriso indulgente, no qual haverá um pouquinho de pesar, mas também de superioridade - das minhas loucuras e das minhas esperanças. De modo algum considero que o Kelvin do futuro seja pior do que o Kelvin que estava disposto a tudo pela causa do assim chamado Contato. E ninguém terá o direito de julgar-me.
301 O ser humano, apesar das aparências, não cria para si seus propósitos. Eles lhes são impostos pelo seu tempo, o tempo em que ele nasceu, e ele pode servir-lhes ou se rebelar contra eles, mas o objeto do serviço ou da rebeldia é dado de fora. Para experimentar a liberdade total da busca de seus propósitos, ele deveria estar só, e isso é impossível de acontecer, pois um ser humano que não é criado entre seres humanos não pode se tornar um humano. Esse… que imagino tem que estar desprovido de pluralidade, entende?